sexta-feira, 19 de julho de 2024

"O DELÍRIO"

De repente o mundo descobriu Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Infelizmente, ainda um incompreendido para muitos brasileiros. Aqui, só um aperitivo.

Que me conste, ninguém ainda relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação desses fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

            Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com uns beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de Santo Tomás impressa num volume e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia essa que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília, de certo), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas dentre em pouco a carreira de tal modo se tornou vertiginosa que me atrevia interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.

Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamos não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com gesto peculiar a esses dois quadrúpedes: abanar as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade para saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo.”

(Excerto de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis (1839-1908).





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