De repente o mundo descobriu Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Infelizmente, ainda um incompreendido para muitos brasileiros. Aqui, só um aperitivo.
“Que me
conste, ninguém ainda relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo
agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação desses fenômenos mentais,
pode saltar o capítulo; vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta
minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um
barbeiro chinês, bojudo, destro escanhoando um mandarim, que me pagava o
trabalho com uns beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo
depois, senti-me transformado na Summa Theologica de Santo Tomás impressa num
volume e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia essa
que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que,
sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre,
alguém as descruzava (Virgília, de certo), porque a atitude lhe dava a imagem
de um defunto.
Ultimamente,
restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me
ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas dentre em pouco a carreira de
tal modo se tornou vertiginosa que me atrevia interrogá-lo, e com alguma arte
lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
Engana-se
– replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.
Insinuei
que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamos não me entendeu ou não me
ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele
falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão,
retorquiu-me com gesto peculiar a esses dois quadrúpedes: abanar as orelhas.
Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me
dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade para saber
onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo,
e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos
séculos: reflexões de cérebro enfermo.”
(Excerto de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis (1839-1908).
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