Hoje, um trecho selecionado de “OS SERTÕES”, do engenheiro, jornalista e escritor carioca Euclides da Cunha (1866-1909). Uma obra extraordinária que teve início com a cobertura jornalística que Euclides da Cunha fez da revolta de Canudos (BA) para o jornal O ESTADO DE S. PAULO, mas que ele transformou em livro em que aborda o acontecimento sob várias áreas do conhecimento – geologia, botânica, sociologia e história. Difícil de ler? Sim, um ótimo desafio para quem quer trabalhar com literatura, não importa em que gênero. Fui à estante buscar meu exemplar de 1942 em português arcaico e, quando o abri, encontrei pedacinhos de papel desbotados em que datilografei o vocabulário que pesquisei no dicionário à medida em que lia a obra. Isso nos idos de 1960. Estão amarelados ou desbotados, mas à disposição de uma nova leitura. Abaixo um excerto da "Arribada".
“Segue
a boiada vagarosamente, à cadencia daquele canto triste e preguiçoso.
Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida
de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão e o que lhe
toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas À feira;
considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à
feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante, em cujo
flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado,
cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o
garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, e derrubando-o, na caatinga;
acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe
em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso,
inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas,
rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis em luta com os rivais
possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas
todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da
sua existência primitiva e simples.
E prosseguem, em ordem, lentos, ao
toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os o refrão
monótono?
E cou
mansõ...
E cou...
ê caõ!...
ecoando saudoso nos descampados mudos...
Estouro
da boiada
De
súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles
centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se,
rnredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam0se,
e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada
estoura...
A
boiada arranca.
Nada
explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos
campeiros.”
Os
Sertões (Campanha de Canudos), Euclides da Cunha (1866-1909). Livraria
Francisco Alves, 1942.
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