domingo, 21 de julho de 2024

"A ARRIBADA"

 

Hoje, um trecho selecionado de “OS SERTÕES”, do engenheiro, jornalista e escritor carioca Euclides da Cunha (1866-1909). Uma obra extraordinária que teve início com a cobertura jornalística que Euclides da Cunha fez da revolta de Canudos (BA) para o jornal O ESTADO DE S. PAULO, mas que ele transformou em livro em que aborda o acontecimento sob várias áreas do conhecimento – geologia, botânica, sociologia e história. Difícil de ler? Sim, um ótimo desafio para quem quer trabalhar com literatura, não importa em que gênero. Fui à estante buscar meu exemplar de 1942 em português arcaico e, quando o abri, encontrei pedacinhos de papel desbotados em que datilografei o vocabulário que pesquisei no dicionário à medida em que lia a obra. Isso nos idos de 1960. Estão amarelados ou desbotados, mas à disposição de uma nova leitura.  Abaixo um excerto da "Arribada".

“Segue a boiada vagarosamente, à cadencia daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas À feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, e derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples.

            E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os o refrão monótono?

E cou mansõ...

E cou... ê caõ!...

ecoando saudoso nos descampados mudos...

Estouro 

da boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, rnredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam0se, e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...

A boiada arranca.

Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.”

Os Sertões (Campanha de Canudos), Euclides da Cunha (1866-1909). Livraria Francisco Alves, 1942.




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