quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018


ALBERT CAMUS E MINHA AVÓ

Minha avó Maria Luiza não teve educação formal na devida época, mas assim que pôde tratou de estudar; lia muito, expressava-se com correção, preocupava-se com o sentido da vida, acompanhava todos os acontecimentos políticos nacionais e internacionais, tinha opiniões que discutia com amigos e conhecidos. Nunca soube o que era feminismo, mas sempre foi dona do nariz dela. Quando proibia alguma coisa, ao ouvir uma tentativa de desobediência, apelava para uma desculpa que considerava definitiva: dá azar. Nunca caí na armadilha, mas, no tempo de criança, obedecia. Depois passei a argumentar, o que nem sempre dava certo.
Maria Luíza Araújo (1894-1977).

E o que tem Albert Camus (1913-1960) com Maria Luiza? Muito. Costumava assistir de uma poltrona minha avó arrumar um armário do quarto dela, o único da casa trancado por causa de seus badulaques de estimação, guardados em caixas e caixinhas, embrulhos ou simplesmente sobrepostos em equilíbrio insuspeito. Para a criança um mundo de curiosidade, mas eu gostava de ver especialmente uma caixinha de papelão, em que ela guardava uma pedra que crescia. Confesso que não me lembro da história que minha avó contava, apenas da pedra, que continuou sempre na mesma caixa, o que era estranho para qualquer coisa que cresça. Era algo mágico porque sabia que pedras não têm vida nem crescem, mas... O tempo passou, eu cresci, ela morreu e esqueci-me da história.
Muitos anos depois li o “Diário de Viagem”, em que Camus narra a passagem pelos Estados Unidos (1946) e pelo Brasil (1949). O livro foi publicado apenas em 1978 na França. Enfim, a estada do escritor no Brasil é uma odisseia que não o deixou nem um pouco feliz. Em um determinado momento Oswald de Andrade o arrastou para Iguape de carro numa viagem terrível para assistir à procissão de Bom Jesus. Há alguns anos quis reler a obra, mas o livro desaparecera e comprei outro. Enquanto me divertia com a saga de Camus pelo Brasil ciceroneado por um bando de intelectuais alucinados, me deparei com algo que me deixou fascinada: ele fala da “pedra que cresce”. Como deixara escapar algo tão importante da minha infância na primeira leitura?  
Decidi pesquisar essa lenda, mas sempre acontecia algo que me impedia de levar adiante minha decisão. Ano passado fui ao Museu de Geociência da USP, mas não é que o livro se escondeu nas estantes? Fui sem ele e a jovem que me atendeu só conseguiu me dizer que é perigoso ter pedras em casa... (Creio que nem sabia quem era Camus.) Imaginei que teria de ir a Iguape e já estava pensando no caso quando, folheando o livro reaparecido durante uma arrumação mais cuidadosa da estante, vi na orelha que Camus escrevera um conto sobre a visita a Iguape. O titulo? Imagine! “A Pedra que cresce”! Claro que comprei no mesmo dia.
Passei o carnaval lendo “O Exílio e o Reino”, livro de contos lançado em 1957 – ano em que o escritor recebeu o Nobel de Literatura. A lenda da pedra está ligada à descoberta da imagem de Jesus no rio Ribeira por pescadores que a levaram para uma gruta e no local onde colocaram cresceu uma pedra. “Todo ano tem festa. Com o martelo você quebra, vai quebrando pedaços para a felicidade abençoada. E depois disso ela continua a crescer, e você continua a quebrar. É o milagre.”
Foi assim que Albert Camus me revelou a história da pedra que minha avó Maria Luiza guardava com tanto cuidado.


2 comentários:

Nilton Tuna disse...

Adorei a história! E sua tia.

Hilda Araújo disse...

Muito obrigada, Nilton. F