terça-feira, 25 de dezembro de 2018

UM NATAL AMARGO


No final do século XVI, a vila de Santos prosperava. Os colonos plantavam cana-de-açúcar e pelo menos seis engenhos produziam açúcar, que se tornara a base da economia local. O açúcar era tão importante que servia também como moeda de troca em caso de necessidade. Os Armadores do Trato, uma sociedade mercantil responsável pelas atividades do comércio marítimo, importando produtos da Europa e exportando gêneros da terra, fora fundamental para a consolidação do povoado. Braz Cubas, o fundador de Santos, tinha todo direito de se sentir realizado ao olhar os resultados do seu trabalho. Estava com 85 anos e era um homem rico.
Por aqueles tempos, o Natal era precedido por um mês de jejum – o tempo do Advento, preparação para a vinda de Deus. Embora nem todos comemorassem o Natal, os festejos estendiam-se por 12 dias – de 25 de dezembro a 6 de janeiro e o evento era dedicado à caridade e à partilha de alimentos, especialmente às crianças.
O Natal de 1591 deveria ser como todos os anteriores. Os moradores da vila foram assistir à missa como faziam sempre e, provavelmente, planejavam dedicar o dia às comemorações à mesa junto com a família. Um Natal, com certeza, à moda portuguesa, embora aos poucos, e por necessidade, novos componentes tivessem sido agregados à festa, como o poderoso Solanum tuberosum, a popular batata; entretanto, a saudade da terra sempre foi mitigada pela importação das castanhas, conhecidas como portuguesas, das frutas secas – damasco, tâmara, uvas... E do vinho, naturalmente. O destaque ficava com os doces – ricos em açúcar (herança árabe) e ovos. Para os mais pobres sempre havia as rabanadas.
         Infelizmente, aquele foi um Natal muito amargo. As pessoas assistiam à missa, quando foram surpreendidas pela chegada dos furiosos piratas de Thomas Cavendish. O pirata inglês planejara cuidadosamente o ataque em São Sebastião. Dois marinheiros de Cavendish – Anthony Knivet e John Jane – contaram mais tarde que na noite da véspera de Natal, um grupo de cem homens partiu rumo a Santos e, no alvorecer do dia 25, desembarcaram na cidade, dispostos a tudo. Capturaram cerca de trezentos homens, além de mulheres e crianças. “(...) demos saque à vila e pusemos todos os nossos homens a postos”.

Thomas Cavendish (1560-1592) nasceu em família rica no condado de Suffolk; foi bem recebido na corte da rainha Elizabeth e ingressou no Parlamento, onde se interessou pelos “negócios” de além-mar. Em 1585 viajou para a América do Norte para conhecer a colônia inglesa e no ano seguinte empreendeu uma viagem de circunavegação, que o deixou rico. Foi o terceiro europeu a realizar esse feito. Mas quando perdeu tudo, Cavendish voltou às atividades de pirataria. Partiu de Plymouth em agosto de 1591, com destino ao oceano Pacífico, para implantar uma rota comercial. Capitaneava uma frota de cinco embarcações: Leicester, Roebucke, Desire, Daintie e Blacke Pinnace. Chegou em novembro à costa da Bahia, nas proximidades de Cabo Frio capturaram um navio mercante português e em seguida rumaram para São Sebastião de onde partiram para o ataque a Santos.
        Os piratas devem ter gostado muito do vilarejo: ficaram lá por dois meses e nesse período queimaram as embarcações ancoradas no porto, cinco engenhos, a igreja. A vila ficou destruída. Enfim, Cavendish resolveu continuar seus planos iniciais de atingir o Pacífico. Na viagem, enfrentaram continuamente mau tempo e, quando alcançaram o estreito de Magalhães em março, estavam sem provisões. As embarcações se separaram e Cavendish decidiu retornar à costa brasileira para reabastecer. Mais especificamente, Santos.
         Quem narra os fatos ocorridos nessa segunda “visita” é o próprio Cavendish em seu diário. Ele autorizou os marinheiros a desembarcar em busca de comida. No dia seguinte à ancoragem, apareceu um índio que dizia ter fugido do seu mestre durante o ataque do Natal. O nativo informou que ali perto havia um engenho muito rico e que ele levaria uns dez homens até lá. “Ordenei, então, que o capitão Barker (...) levasse vinte ou trinta homens consigo”. No final da tarde, para surpresa do pirata, o grupo “enviou de volta o meu bote com um pouco de milho, seis galinhas e um pequeno carneiro. Vendo que a companhia não retornava, enviei novamente o meu bote com um homem encarregado de adverti-los de que os aguardava impacientemente. O bote cedo retornou com uma resposta que muito me espantou. Os homens mandavam dizer que não sairiam de lá e que um carneiro e seis galinhas não bastavam para salvar as nossas vidas”. Sem muita escolha, Cavendish resolveu esperar. E esperou bastante, pois conta que três dias depois o índio que se oferecera para ajudar reapareceu com três ferimentos graves. “Ele contou-nos que os demais tinham sido vítimas de uma matança promovida por trezentos índios e oitenta portugueses”.
        A maré de sorte de Thomas Cavendish terminava ali. Quando partiu de Santos com destino a Ilha de Santa Helena, o pirata só teve insucessos e não voltaria à Inglaterra: morreu entre novembro e dezembro de 1592 a bordo do Leicester. No seu diário escreveu dias antes: “Perdoe os meus rabiscos: saiba que mal posso segurar a pena”.


Fonte: "Ascensão e queda do pirata Cavendish", de Jean Marcel Carvalho França, Revista de História da Biblioteca Nacional. 

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