quinta-feira, 21 de outubro de 2021

VAMOS À PRAIA

 A primeira vez que vi o mar, não me esqueço. Parece que isso ficou dentro de mim como uma necessidade permanente do meu ser. Teria uns 10 anos (...) foi de chofre, o mar, uma grandeza longínqua, enorme, fiquei doentio, não ia, me levavam.

Mário de Andrade*

 O século XX despontou em um mundo predominantemente masculino e formal. Cavalheiros usavam terno e gravata, chapéu de palha ou feltro, polainas e quase sempre levavam guarda-chuva. As senhoras iam às compras em seus vestidos longos, reveladores de um corpo perfeito à custa dos coletes de barbatanas de ferro que desciam até um centímetro abaixo do umbigo. Sob o chapéu, preso por um alfinete com cabo de madrepérola ou de pedras de fantasia, escondia-se o cabelo. Eram itens obrigatórios as meias (pretas) e as botas de cano alto. Nas mãos enluvadas, o leque de seda ou gaze e a sombrinha.  Os tecidos da moda são chamalote, faille, tafetá, surá (tecido macio e leve de seda) e merino (tecido de lã de carneiro).

A cidade crescia na direção do mar em um trajeto definido pelo sistema publico de transportes. Os acessos para a praia eram feitos pelas Vias Conselheiro Nébias e Dona Ana Costa – a primeira a dispor de serviço de bondes a tração animal. Os simpáticos bondinhos chegavam a lugares tão distantes quanto a Ponta da Praia e São Vicente, atravessando áreas encharcadas e insalubres. A orla era ocupada por chácaras como a de Júlio Conceição e de Dona Ana da Rocha Ribeiro dos Santos e casarões elegantes – como o do alemão C. A. Dick, construído em 1900 (Pinacoteca Benedito Calixto). Mas foram os hotéis, pensões, clubes e casas de diversão que começaram a atrair público para a praia.

Desde 1894 o Grande Hotel José Menino dominava a paisagem daquela praia. “Não se pode arribar em Santos por mar, sem admirar um imponente e esplendido edifício que se eleva majestosamente ao longo de uma praia maravilhosa e rodeada de exuberante vegetação” – escreveu Charles Hü, em 1907, em sua obra Le Brésil[1]. No início do século XX, Madame Elisa Poli, que comprara o Grande Hotel José Menino, mudou a denominação do estabelecimento para Grande Hotel Internacional numa demonstração de sua ambição. O edifício – com 22 janelas, além dos dois torreões que se abriam para o mar e a Ilha de Urubuqueçaba – oferecia comodidades como sala de leitura, conversação, boudoir das damas, fumoir dos cavalheiros e sala de bilhar, sem contar salão de baile e de concertos.

O Parque Balneário original foi construído na Avenida Ana Costa e constituía-se de um hotel dotado de um parque que, entre outras atrações, oferecia almoço ao ar livre. Na esquina da via Conselheiro Nébias, havia o Columbia Skating Rink para os adeptos da patinação; além do serviço de refeição, o Miramar (nome com que se popularizou) oferecia programas cinematográficos e musicais.

Os ingleses, que formavam uma comunidade expressiva graças às empresas de capital britânico na cidade, fundaram o Santos Athletic Club e construíram a sede no José Menino, próximo ao Grande Hotel Internacional. No Clube dos Ingleses, como ficou conhecida a entidade, as senhoras reuniam-se para saborear o chá das cinco, enquanto os homens jogavam críquete. Mas havia outros clubes para outras modalidades esportivas: como o Velo-Santista para os ciclistas, na Ana Costa, onde também ficava o Sport Club Internacional – que introduziu o futebol em Santos.

A praia era um espaço de contemplação do mar, da atividade dos pescadores e de atletas que se aventuravam a nadar ou a velejar pela baía. As senhoras e senhoritas costumavam aparecer com trajes de passeio mais leves e de sombrinha em punho para se abrigar do sol. O bronzeado era atributo das classes trabalhadoras. Banho de mar, apenas sob prescrição médica. Falava-se em “temporadas de banho” e de “cura climatérica”[2]

No início da segunda década do século XX, a orla santista tornou-se mais movimentada e nos céus haveria mais que rabos-de-palha e gaivotas. Estavam chegando os pioneiros da aviação.  

A orla santista com os jardins a partir do José Menino, janeiro de 2018.


*Os pais de Mário de Andrade (1893-1945) moraram em Santos. Carlos Augusto Andrade mudou para Santos, quando a esposa Maria Luísa adoeceu seriamente. Os médicos receitaram, além dos remédios, banhos de mar. O tratamento devolveu-lhe aos poucos os movimentos e a família voltou para São Paulo, onde o poeta nasceu algum tempo depois.


Fontes citadas no livro "SANTOS: Histórias de Aviadores, Constitucionalistas e Expedicionários", de Hilda Prado de Araújo. Santos, SP. Editora Comunicar, 2016.

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