Rio de Janeiro, primeira
década do século XX e o Carnaval já dominava a capital da República. Se em São
Paulo a festa era discreta, na Capital do país, as coisas eram bem diferentes.
Ninguém melhor do que o jornalista e escritor Emílio Cristóvão dos Santos
Coelho Barreto (1881-1921), o maravilhoso JOÃO DO RIO, para descrever uma
noite carnavalesca na Rua do Ouvidor onde os cordões se sucediam. A descrição é
minuciosa – o jogo de luzes, o som estridente dos instrumentos e da multidão que
se espremia para ver e participar da festa... Não falta sequer o odor forte do suor que nos
lembra as noites quentes dos verões cariocas.
Excerto da crônica
publicada na revista KOSMOS (Rio de Janeiro, fevereiro de 1906) com o título de
“Elogio do Cordão”.
JOÃO DO RIO
“Era em plena Rua
do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se sufocada. Havia sujeitos
congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças
a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em
todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à Rua Direita
dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rugassem duzentos tambores, zabumbassem
cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se
fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo.
No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios.
Nos estabelecimentos comerciais, das redações dos jornais, as lâmpadas elétricas
despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia (sic) e
parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das
bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como
um irisamento do ar, caíam, voavam rodopiavam. Essa iluminação violenta era
ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e
as súbitas explosões azuis dos fogos de Bangala; era como que arrepiada pela
corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis.
Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti;
mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes,
frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro
estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o
baixo instinto da promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia
toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da
loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás
de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos,
futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do
dia, essas cantigas que aparecem no Carnaval:
Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E o bataião navá!”
Para poupar
tempo ao leitor aí vai uma ajuda. O Michaelis não
AUER – forma reduzida de auerbachita mineral prismático de
diversas cores, geralmente acastanhado ou cinzento, principal fonte de
zircônio, usado como refratário.
FARTUM – cheiro desagradável. O popular cecê.
PINCHO – movimento rápido, salto, pulo.
PLETORA – superabundância ou excesso de algo.
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