sábado, 15 de fevereiro de 2025

CARNAVAL CARIOCA

 

"Carnaval nos Arcos da Lapa" (1961), Heitor dos Prazeres.

Rio de Janeiro, primeira década do século XX e o Carnaval já dominava a capital da República. Se em São Paulo a festa era discreta, na Capital do país, as coisas eram bem diferentes. Ninguém melhor do que o jornalista e escritor Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), o maravilhoso JOÃO DO RIO, para descrever uma noite carnavalesca na Rua do Ouvidor onde os cordões se sucediam. A descrição é minuciosa – o jogo de luzes, o som estridente dos instrumentos e da multidão que se espremia para ver e participar da festa...  Não falta sequer o odor forte do suor que nos lembra as noites quentes dos verões cariocas.

Excerto da crônica publicada na revista KOSMOS (Rio de Janeiro, fevereiro de 1906) com o título de “Elogio do Cordão”.

JOÃO DO RIO

“Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rugassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, das redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia (sic) e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis dos fogos de Bangala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto da promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que aparecem no Carnaval:

Há duas coisa

 Que me faz chorá

É nó nas tripa

E o bataião navá!”

 

Para poupar tempo ao leitor aí vai uma ajuda. O Michaelis não

AUER – forma reduzida de auerbachita mineral prismático de diversas cores, geralmente acastanhado ou cinzento, principal fonte de zircônio, usado como refratário.

FARTUM – cheiro desagradável. O popular cecê.

PINCHO – movimento rápido, salto, pulo.

PLETORA – superabundância ou excesso de algo.

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