sábado, 1 de fevereiro de 2020

MEDICINA E ARTE


Os Lusíadas
Ilustração: Gustave Doré (1832-1883).
CANTO QUINTO
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E foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem o ver o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia.
82
Apodrecia c’um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta; e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

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Enfim, nesta incógnita espessura
Deixámos para sempre os companheiros,
Que, em tal caminho e em tanta desventura,
Foram sempre connosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assi mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o ilustre os ossos.

Os LUSÍADAS, Luis de Camões, Editora Abril Cultural, 1982.

A doença descrita pelo poeta é o escorbuto, que dizimava as tripulações das embarcações que faziam as rotas transoceânicas. A causa da doença é a falta de vitamina C, ausente da dieta dos navegantes. Para o médico Pedro Nava (1903-1984) “... não há tratado antigo ou moderno que tenha dado descrição da oropatia que a complica, com a precisão e a dramaticidade camonianas”. 

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