sábado, 26 de setembro de 2020

A ARTE PERDIDA DE VIAJAR

Continuo a folhear o livro do pensador chinês Lin Yutang e desta vez paro no capítulo sobre “O gozo de viajar”. É muito interessante a leitura das observações que ele faz sobre o crescimento da indústria do turismo nos anos de 1930, quando essa era uma atividade restrita ainda a poucos. “Viajar parece haver se convertido numa arte perdida” ‒ diz ele. Se Yutang pudesse ver o que ocorre hoje no segmento do turismo em todo o mundo, ficaria assombrado. Pesquisa elaborada pela consultoria britânica Oxford Economics em 2018 e publicada na imprensa brasileira em abril de 2019 revelou que o turismo gerou uma participação de US$ 8,8 trilhões no Produto Interno Bruto mundial (10,4%), uma alta de 3,9%, superior à expansão da economia global (3,2%). O setor foi responsável por 319 milhões de empregos, tornando-se protagonista da abertura de 1 em cada 10 postos de trabalho*. 

        Yutang começa seu artigo enumerando as falsas viagens: viajar para melhorar a educação, viagem para conversa (contar a respeito na volta) e viagem com horário (excursão). Para ele o verdadeiro viajante é um vagabundo “com as alegrias, as tentações e o sentido de aventura que tem o vagabundo”. Ou seja, “viajar é vagabundear, ou não é viajar”. Esse é meu tipo de viagem. Sem compromisso. Quero ver, observar, descobrir lugares e pessoas e me avaliar em situações inesperadas. Quantas vezes me perguntam quem eu conheço por lá, quem vou visitar e se admiram quando digo que não conheço ninguém. Quantas vezes cheguei a uma cidade sem reserva em hotel e contei com a indicação de escritórios oficiais que funcionam nas estações e aeroportos. (Atualmente, no exterior, já nos aeroportos as autoridades pedem a confirmação de reserva em hotel.)

       Entre as várias maneiras de viajar ele cita a viagem para não ver nada nem ninguém “a não ser os esquilos e os almiscares e os pica-paus e as nuvens”. Yutang aproveita para contar a aventura de uma amiga americana que, na China, foi com amigos chineses a uma colina perto de Hangchow, “com o fim de não ver nada” (grifo dele). Manhã brumosa. À medida que subiam a colina a névoa se adensava. A americana começou a se mostrar desalentada, mas os amigos insistiram para que ela prosseguisse, mas a paisagem continuava envolta em nuvens. “Por fim chegaram ao cume. Cercava-os por todos os lados um conjunto de nevoas e brumas, ficando apenas visível no horizonte o contorno de distantes montanhas. ‘Mas aqui não há nada para ver!’, protestou minha amiga. 'Precisamente, subimos para não ver nada', responderam-lhe os seus amigos chineses.”

Com essa história Yutang conclui que a filosofia de viajar consiste na capacidade de ver, que anula a distinção entre viajar por um país distante e andar pelos campos vizinhos por uma tarde qualquer. O viajante verdadeiro precisa apenas ter coração para sentir e olhos para ver. “Se não os tem, suas excursões às montanhas são pura perda de tempo e dinheiro; em compensação, se os tem poderá conseguir a maior alegria das viagens sem ir sequer às montanhas, mas permanecendo em sua casa e olhando os arredores (...).”

Enquanto folheio “A importância de viver”, lembro-me do que escreveu o professor francês Michel Onfray (1959) e que vale para quase todas as minhas viagens: “A viagem começa numa biblioteca. Ou numa livraria.” (Teoria da Viagem - poética da geografia, L&PM Editores, 2009.)

Grand Canyon, Arizona, Estados Unidos, outubro de 2017.

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