Não gosto muito de ler biografias, porém li muitas. Há alguns escritores que têm o dom de escrever sobre uma pessoa de forma tão agradável que elas acabam se transformando em personagens dignos de boa ficção, independentemente, do que foram em vida. As autobiografias, por sua vez, são armadilhas para o leitor já que o autor tentará mostrar o seu lado melhor e colorir o lado mais escuro de sua personalidade, pecando por omissão ou por excesso. Ao limpar arquivos, achei trechos de algumas autobiografias que chamaram minha atenção pelo bom humor, pela criatividade ou pela sinceridade. Em vez de jogar fora, resolvi aproveitar para mostrar como as pessoas famosas se veem. E para começar escolhi o antropólogo DARCY RIBEIRO (1922-1997), que nasceu em Montes Claros e faleceu em Brasília. No prólogo, ele explica que escreveu CONFISSÕES movido “pelo medo-pânico de morrer antes de dizer” a que veio.
Lá ia ela suspender ninguém pelos pés, como se tivesse pondo no mundo um
acrobata? Qual! Incapaz! Ela deve é ter me lavado com água-de-cheiro, morna,
tratado com carinho meu umbigo intumescido, me enrolado em panos relavados por
mamãe e me posto ali. Ali, onde? Quem me terá dado de mamar pela primeira vez?
Sei lá!
Dói pensar naquela bolinha de gente, amarfanhada, banguela, careca, que
eu era, saindo do ventre de mamãe. Perdi ali, então, o oco quentinho que, em
vão, ando procurando pelo mundo. Expulso de lá, caí na vida.
Nascido, só tinha olhos para sofrer as doidas luzes da claridade.
Ouvidos, para me espantar com os ruídos de fora. Aflito, buscaria saudoso, o
ritmo perdido das badaladas do coração materno. Algum medo teria, de que me
ressurgissem os roncos intestinais de mamãe que eu ouvia no oco.
Meu corpo inteiro armado de tato apalparia, em vertigem o vazio abismal
em que caí. E o faro? Creio que meu susto maior ao me ver cá fora terá sido com
a fedentina deste mundo. Aromas, ali ao meu redor, não imagino nenhum.
Onde ficou meu cálido nicho? Agitando braços e pernas como um inseto
virado de patas pro ar, eu piscava, tossia, chorava. Vivia, afinal, meu destino
de ser autônomo, condenado à solidão de uma existência própria, desgarrada.”
* Darcy Ribeiro: CONFISSÕES. Companhia das Letras. SP: 1997.
Nenhum comentário:
Postar um comentário