segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
ENCONTRO NA PRAÇA
domingo, 27 de fevereiro de 2022
PRIMÓRDIOS DO CARNAVAL CARIOCA
Carnaval de 1919. No Largo da Carioca, o grupo de pierrôs mascarados a bordo de um moderníssimo conversível, posa para a posteridade. Quem é quem? Fantasias iguais. Cores diferentes? Acho que não. O senhor com uma boina à direita parece não acreditar no que vê. O motorista e o ajudante serão os únicos identificados e talvez nem ganhem uma cópia da foto. Ao fundo o Teatro Municipal e à direita a Biblioteca Nacional. Junto aos jardins, os bancos estão ocupados por um homem que observa o grupo, enquanto o do lado lê uma folha e outro descansa apoiado à bengala bem relaxado; na extremidade, um senhor gesticula para o que parece tocar um acordeom...
Os bailes
carnavalescos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro começaram há noventa anos,
mas só atingiram o auge alguns anos depois. No Carnaval de 1932, transformaram
a plateia em um luxuoso salão de baile que ficou repleto de foliões (foto). Como
o automóvel ainda era um artigo de luxo e para bem poucos, o distinto público
ia mesmo de bonde ao teatro, mas um bonde maquiado que o carioca logo apelidou
de “bonde ceroula” e que o pessoal da Cinelândia preferia chamar de
afrescalhados, porque os bancos eram revestidos com panos brancos para que os
passageiros vestidos a rigor pudessem sentar confortavelmente.
Corso carnavalesco na Cinelândia. A foto não tem data, mas os apaixonados por carros até podem descobrir o ano pelo modelo do automóvel.
FONTE: Cinelândia. Breve história de um sonho. Editor Marcos da Veiga Pereira. Ensaio fotográfico de Carlos Secchin, 1997.
PEDACINHO COLORIDO DE SAUDADE
É Carnaval. Se não gosto da festa, gosto das músicas... Muitos cantores gravaram marchinhas, sambas, chorinhos e frevos inesquecíveis. Das muitas lembranças infantis, uma especial: Francisco Alves (1998-1952). Não gostava dele, o cantor preferido da minha avó e das tias que choraram muito a morte trágica do cantor em um acidente de automóvel na Via Dutra. O tempo passou e, adulta, reconheci as qualidades de Chico Viola, como o chamavam. O jornalista David Nasser (1917-1980) em parceria com Candeias Jota Júnior (ou vice-versa) é o autor de “Confete” cuja letra tem a melhor definição para o papelzinho redondo de várias cores:“confete, pedacinho colorido de saudade”. Jota Jr. morreu em 2009 aos 85 anos. A marchinha é de 1951.
“As Garotas do Alceu”, ilustração Alceu Penna (1915-1980), publicada
em O CRUZEIRO.
sábado, 26 de fevereiro de 2022
NO FRIGIR DOS OVOS
Folheio, preguiçosamente, o “Cozinheiro Nacional”, imaginando se há alguma receita bem simples para uma senhora do século XXI pouco interessada em culinária. O primeiro obstáculo são as medidas, tudo em libras. Bem que o editor poderia ter feito uma adaptação para o sistema métrico decimal... Consulto a internet. Uma libra equivale a 453,593 gramas! Outro problema: as receitas são para um batalhão... Descubro as omeletes. Dezenas delas. Que bom! Fico entre a omelete à mineira e a de vento. Omelete de vento! Leio, já com a caneta em punho, mas desisto logo: oito ovos! Poderia fazer come menos, claro, porém, à frente havia outras adaptações ao século XXI. Vamos tentar a receita mineira. Agora, além de fazer contas, tenho que consultar o dicionário: conheço muitos mineiros, mas nunca ouvi falar de folhas de borragem. O dicionário não ajuda nada: “denominação comum a diversas plantas herbáceas da família das boragináceas”. Decidi: vou almoçar fora.
Curiosos? Aí vão as receitinhas. Omelete de vento. Oito ovos. Batem-se as gemas com quatro colheres de açúcar e canela; depois, “batem-se as claras com sal até ficarem duras; juntam-se as gemas, deita-se tudo num prato que coloca sobre o fogo, cobrindo-o com uma tampa cheia de brasas; o fogo deve ser meio vivo, a fim de os ovos crescerem; estando cozido, cobre-se com açúcar e canela, e serve-se quente”. Omelete à mineira: “batem-se seis ovos com uma colher de farinha de milho coada; põem-se neste batido umas folhas de borragem picadas; frigem-se duas colheres de gordura, tira-se uma colher desta massa e deita-se na gordura, repetindo esta operação até acabar os ovos batidos; servem-se estes bolos (?) com algum molho”.
Boa sorte!
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022
JANTAR EM FAMÍLIA
Folheio o “Cozinheiro Nacional”, livro que reúne informações e receitas usuais da cozinha brasileira (e europeia) no século XIX, ou seja, no Império; na primeira parte, revela os utensílios essenciais ao funcionamento da cozinha e regras de etiqueta à mesa. As receitas são bem curiosas, provaria poucas, pois eu como apenas por necessidade, quando o estomago reclama, muita coisa digo que não gosto, mas na verdade nunca provei. Sou carnívora, mas não como miúdos ‒ comi (engoli) fígado três vezes na vida, duas sem saber e a terceira em casa de um amigo. (Foto à direita: salão de banquete do castelinho da Ilha Fiscal, novembro de 2015.)
Eis o cardápio para um jantar familiar para doze pessoas:
JANTAR DE FAMÍLIA
Primeiro serviço
Duas sopas:
Sopa de bolinhos.
Sopa de leite.
Quatro entradas
Língua de vaca à caseira.
Galinha engrossada com ovos.
Quitute de veado.
Caramujos refogados.
Quatro legumes
Ervilhas novas com leite.
Batatas assadas.
Nabos gelados.
Repolho roxo refogado.
Quatro pratinhos
Mixed pickels.
Anchovas.
Azeitonas.
Fatias de presunto.
Um galheteiro com vinagre, sal e pimenta.
Duas saladas
Salada de anchovas.
Compota de sumo de laranja.
Segundo serviço
Quarto de vitela assado.
Ganso assado no espeto à inglesa.
Duas saladas:
Salada de anchovas.
Compota de sumo de laranja.
Sobremesa:
Pudim de arroz com queijo.
Ovos em calda.
Manjar de galinha.
Dois queijos
Queijo mineiro.
Queijo londrino.
Quatro pratos ‒ doces em calda.
Dois pratos ‒ doces secos.
Dois pratos
Melão.
Laranjas.
Desse almoço em família que o autor sugere, frisei o que comeria. No caso das sobremesas, escolheria apenas uma.
"O prazer da mesa pertence a todas as idades, a todas as condições, a todos os países, a todos os dias; pode combinar-se com os demais prazeres, de cuja perda ele nos consola ficando em último lugar." Atribuído ao advogado, músico e chef francês Brillat-Savarin (1755-1826).
COZINHEIRO NACIONAL - Coleção das melhores receitas das cozinhas brasileira e europeias. Anônimo. São Paulo, Ateliê Editorial/ Editora Senac, São Paulo, 2008.sábado, 19 de fevereiro de 2022
PASSARINHOS
Quando saio gosto de deixar as janelas abertas para arejar o apartamento e o sol entrar. De uns tempos para cá, quando volto entraram não apenas a brisa e o sol, mas também uns passarinhos curiosos que adoram se aboletar em cima das estantes, sobre meu cavaquinho e no varal. O problema é que estão ficando atrevidos. Já flagrei um entrando na seleta, onde lia tranquilamente, como se ele fosse o dono do lugar. Semanas atrás ouvi um barulho na vidraça, que estava fechada porque garoava, não vi nada, mas percebi que algo batia no vidro e não é que o invasor apavorado se debatia porque não encontrava a saída? Lá fui eu abrir a janela e colocá-lo para fora. Não descobri por onde entrou. Outro dia lia no sofá bem ao lado da janela, quando achei que havia escutado um barulho semelhante ao de papel. Olhei em volta. Nada de anormal. Já ia continuar a leitura, quando resolvi investigar melhor e eis que encontro o atrevido, caminhando pela cozinha muito tranquilamente e, ao me ver, voou para o varal, onde esperou que eu abrisse a janela para sair.
ESTADOS UNIDOS ‒ Em Washington, depois de visitar um dos muitos museus no entorno do National Mall, resolvi comer alguma coisa e área tem muitos quiosques de lanches. Foi quando lembrei que deveria provar um cachorro-quente, afinal, nada mais americano que cachorro-quente e coca-cola. Fui até o quiosque, fiz o pedido (vendiam só Pepsi) e fui para uma das mesas do jardim. Logo tinha companhia e um par de olhos redondinhos me observava aboletado primeiro numa corrente e depois no tampo da mesa.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
QUEM SABE?
Gostei das caminhadas que o tio Nhonhô fazia para ir trabalhar e aos domingos, quando convidava o sobrinho Jorge Americano (1891-1969), para um passeio. Difícil mesmo é reproduzi-las porque em mais de um século a cidade mudou completamente, mas tentarei. Nhonhô, que morava na casa do irmão, tinha 30 anos, era solteiro, trabalhava meio período e aproveitava a vida: fumava e costumava sair após o jantar para encontrar amigos, retornando por volta da meia-noite para grande desgosto da família.
Mas são os passeios dominicais que me interessam. Eles moravam na Rua dos Andradas, Santa Ifigênia, e iam de bonde até o final na Vila Mariana, onde desciam e andavam pela estrada das boiadas, subiam pelo caminho que se tornaria mais tarde a Rua Abílio Soares até o Paraíso. O roteiro me rendeu um quebra-cabeça. Dos bons! Afinal, a Vila Mariana era praticamente rural e por ser muito distante do centro fora escolhida para sediar em 1887 o Matadouro Municipal (prédio da Cinemateca). Leio em algum lugar que a estrada das boiadas estendia-se desde Pinheiros até o Ibirapuera, ainda um grande charco. Minha pista é o final da linha do bonde: a Estação da Vila Mariana, inaugurada em 1885, era (mais ou menos) na área em que hoje se encontra a Praça Dr. Teodoro de Carvalho, entre as Ruas Domingos de Moraes e Sud Mennucci. Quem sabe os andarilhos desceriam por uma trilha (atual Rua França Pinto), entrariam à direita (hoje Rua Tangará) e daí pela rota que nos dias atuais conhecemos como Avenida Rodrigues Alves até a Cubatão e daí até a Rua Abílio Soares em direção ao Paraíso... Quem sabe? O certo é que no Paraíso havia uma pausa para engraxar os sapatos enlameados no caminho. A aventura terminava na Confeitaria Castelões, onde saboreavam um sanduíche e bebiam um chope antes de voltar para casa. Fico imaginando quantos anos teria Jorge Americano para apreciar chope... Ou o plural seria pela presença de Emílio Ribas (1862-1925), o médico sanitarista, amigo de Nhonhô, que às vezes participava do passeio? Quem sabe?
São Paulo Naquele Tempo (1895-1915). Jorge Americano (1891-1969). São Paulo: Edição Saraiva, 1957.
JORGE AMERICANO era professor de Direito. Foi reitor da Universidade de São Paulo e um dos fundadores da Faculdade de Direito Mackenzie; presidiu o Instituto dos Advogados e atuou como juiz no Tribunal de Arbitragem de Haia.
sábado, 12 de fevereiro de 2022
CHEIROS
Algumas coisas simplesmente desaparecem de nossa memória e delas de repente lembramos, mas de forma indefinida. Caso do açúcar preto. Não me foi estranho encontrar menção a ele, mas não consigo estabelecer onde e como o açúcar preto fez parte da minha infância. Esse “problema” surgiu quando folheava o livro de Jorge Americano sobre “São Paulo Naquele tempo” e me deparei com o capítulo dos “Cheiros que se sentiam”. Da longa relação feita por ele, muitas são banais. Felizmente, ainda sinto o perfume do café torrado porque no empório aqui perto é possível comprar o café torrado na hora. Ele cita o cheiro do pavio de vela soprada... Para mim era só cheiro de vela ‒ não gosto de velas. Jorge Americano vai enumerando o cheiro de mofo da abertura dos porões baixos, de papel na papelaria (só me lembro de cheiro de livro e de jornal novos), de madeira nova em serrarias (há anos que não encontro uma serraria), de couros expostos na Rua Vinte e Cinco de Março (teria em Santos? não lembro), flores de enterro (acho que se incluem no odor de cemitérios)... E lá se encontra o cheiro de lisol e creolina, que seguem em moda no século XXI ‒ especialmente o lisol que ganhou destaque nos dois últimos anos. Fiquei curiosa com o cheiro do lacre da correspondência do Correio, de carvão de ferro de passar roupa (nunca vi um em funcionamento). Não gosto, por exemplo, do perfume de damas-da-noite nem de jasmins. Jorge Americano consegue até ser poético quando cita “cheiro de mulher feliz”.
Para mim sempre me agradam cheiro de pão fresco, da canela sobre as rabanadas de vinho, do peixe assando, de abacaxi maduro, de carne assando em fogão a lenha (só lembrança), maresia e...muito mais.
São Paulo Naquele Tempo (1895-1915). Jorge Americano (1891-1969). São Paulo: Edição Saraiva, 1957.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
RONALD DE CARVALHO
O poeta carioca RONALD DE CARVALHO (1893-1935) teve um papel importante na noite de abertura da semana de arte moderna, quando recitou suas poesias e fez uma conferência sobre “A pintura e a escultura moderna no Brasil”. Na ocasião tinha 29 anos e trilhava uma carreira diplomática de sucesso. O poeta modernista era filho do capitão-tenente e engenheiro naval Artur Augusto de Carvalho e sobrinho de Álvaro Trajano de Carvalho, que tiveram uma importante participação na Revolta da Armada (1889-1894), o levante contra o presidente Floriano Peixoto (1839-1895). Ambos foram presos em Santa Catarina e fuzilados em 1894.
Assim, pode-se dizer que em 1922, Ronald de Carvalho já era um modernista internacional. Nesse ano, ele publica dois livros: “Epigramas irônicos e sentimentais” e “Espelho de Ariel”. Homem de muitas atividades (historiador, tradutor, crítico), ele continuou colaborando com jornais da Argentina, Estados Unidos, França, México, Peru e Suíça, e manteve por muitos anos uma colona no Jornal do Brasil sobre política internacional.
Ronald de Carvalho morreu em acidente de
carro no Rio de Janeiro em 15 de fevereiro de 1035 aos 42 anos.
O
MERCADOR DE PRATA, DE OURO E ESMERALDA
Cheira a mar! cheira a mar!
As redes pesadas batem como asas,
As redes úmidas palpitam no crepúsculo.
A praia lisa é uma cintilação de escamas.
Pulam raias negras no ouro da areia molhada,
O aço das tainhas faísca em mãos de ébano e bronze.
Músculos, barbatanas, vozes e estrondos, tudo se mistura,
Tudo se mistura no criar da espuma que ferve nas pedras.
Ilustração: Retrato de Ronald de Carvalho (1921), por Vicente do Rego Monteiro. Acervo Museu de Arte Contemporânea/ USP.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022
RIBEIRO COUTO
A
chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
continua a cair pela tarde, lá fora.
Da
saleta fechada em que estamos os dois,
vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
a chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.
Dentro de nós existe uma tarde mais fria...
Ah!
Para que falar? Como é suave, brando,
o tormento de adivinhar - quem o faria? -
as palavras que estão dentro de nós chorando...
Somos
como os rosais que, sob a chuva fria,
estão lá fora no jardim se desfolhando.
Chove dentro de nós... Chove melancolia...
“O jardim das confidências”, 1921.
domingo, 6 de fevereiro de 2022
OS ESQUECIDOS
Minas Gerais esteve
representada na semana modernista por AGENOR FERNANDES BARBOSA (1896-1976),
natural de Montes Claros. Formado em direito pela faculdade do Largo de São
Francisco em 1926, Barbosa foi poeta, jornalista e fez carreira como
funcionário público. Foi descoberto por Menotti Del Picchia, que o lançou Barbosa em
sua coluna no Correio Paulistano, em
14 de abril
de 1921. O talento do mineiro já era reconhecido
em seu estado natal: “Agenor
Barbosa, quando jovem, foi um dos poetas mais queridos de Belo Horizonte. Muito
magro, muito pálido, escrevia nas revistas versos líricos, que eram gravados de
cor pelas garotas de 1915" ‒ de acordo com entrevista do acadêmico
mineiro Djalma Andrade, publicada no jornal ESTADO DE MINAS. Em São Paulo Agenor
trabalhou no CORREIO PAULISTANO e na editoria literária da revista A CIGARRA.
Seus poemas o identificaram com os modernistas, mas não gostava de
classificações como escreveu: “Tenho desejo de ser,
simplesmente, um daqueles tantos obscuros trabalhadores da arte, que se
esforçam anônima e ingloriamente para atualiza-la neste tempo e nestes lugares,
onde a tradição é um culto irrevogável e onde os mortos, como na moralidade de
Comte, ainda tanto governam os vivos". Agenor Barbosa não só participou da Semana de
Arte Moderna como ajudou na organização, junto com Rubens Borba de Moraes. Na
segunda noite do evento do Theatro Municipal, 15 de fevereiro, ele recitou um
poema que, dizem, teria sido o único a receber aplausos naquela noite que teve
palestra de Menotti Del Picchia.
Outro participante da Semana foi TÁCITO DE ALMEIDA (1899-1940), irmão de Guilherme de Almeida. Teve um trabalho importante na realização e divulgação da Semana de Arte Moderna. Formado em Direito (Largo de São Francisco), foi delegado, promotor, poeta e jornalista. Participou ativamente do Movimento de 1932. É um dos fundadores da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde lecionou Ciências Políticas. Suas poesias foram publicadas em jornais e revistas; escreveu um livro em 1922, publicado postumamente ‒ “O Túnel”. Após a juventude, Tácito de Almeida deixou a poesia para o irmão. O professor Leandro Pasini, doutor pela USP em Teoria Literária e Literatura Comparada, afirma que “Do que foi publicado de sua obra poética, não obstante, poderia se julgar que se trata de um autor dotado de aguda consciência de seu momento histórico-literário e que buscou afirmar a sua personalidade moderna por meio da consumação de sua sensibilidade crepuscular, de seu penumbrismo”. (“A Semana de 22 e a poesia: contradições e desdobramentos”)
SALVARTácito de Almeida
Mais um desejo, amigo!
É preciso soltar,
Pelas florestas frias e
adormecidas,
Todos os nossos desejos
tímidos,
Procurando mesmo
assombrá-los,
Para que fujam, para que
corram
E se desviem por todos os
lados...
Mais um desejo!
É preciso que a pálida vida,
Nos seus longos passeios
desoladores,
Encontre sempre um desejo
perdido
Que ela saivá salvar.
Revista Klaxon, nº 6. 15/10/1922.
Fonte: http://literalmeida.blogspot.com
Penumbrismo: período entre o Simbolismo e o Modernismo
O paulista LUÍS ARANHA (1901-1987) também participou da programação do dia 15 de fevereiro, declamando seus poemas e apresentando a seção de artes plásticas. Na época ainda era estudante de Direito. Luís Aranha foi apresentado a Mário de Andrade pelos irmãos mais velhos e passou a frequentar a casa do escritor que reunia os amigos às terças-feiras. Aranha trabalhou numa drogaria na Rua São Bento e a experiência resultou no poema “Drogaria de Éter e de Sombra”, muito bem recebido pela crítica. Seus poemas foram publicados na Klaxon, na Revista do Brasil e Revista Estética (RJ). Em 1984, o poeta Nelson Ascher e o crítico literário Rui Moreira Leite reuniram a obra de Luís Aranha no livro “Cocktails” em 1984 (São Paulo: Editora Brasiliense). Depois que se formou, Aranha mudou para o Rio de Janeiro e entrou para a carreira diplomática, abandonando também a literatura.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
UM MODERNISTA FORA DE SÉRIE
O araraquarense Rubens Borba de Moraes (1899-1986) foi um dos
organizadores da Semana de Arte Moderna. Filho de família abastada, estudou na
Europa e retornou ao Brasil em 1919, quando conheceu o grupo modernista ao qual
se uniu. Moraes foi pesquisador, historiador e tinha paixão pelos livros. Em 1924
publicou “Domingo dos séculos”, que o bibliófilo José Mindlin (1914-2010)
considerou “uma deliciosa digressão sobre arte”. Em 1932 participou da revolta
paulista. Em 1935 Rubens de Moraes tornou-se diretor da Biblioteca Municipal de
São Paulo, hoje Biblioteca Mário de Andrade; no ano seguinte criou na
prefeitura o curso de Biblioteconomia que posteriormente foi integrado à Escola
de Sociologia e Política da qual foi um dos fundadores. (Na verdade, o curso
foi fechado pelo prefeito Prestes Maia que achava que essa não era atribuição
da prefeitura.) Logo depois foi convidado para dirigir a Fundação Biblioteca
Nacional, onde também encontrou obstáculos para desenvolver seu trabalho. Não
ficou parado muito tempo porque a Organização das Nações Unidas (ONU) o
contratou para dirigir o Serviço de Informações e a biblioteca em Paris e Nova
York.
Quando se aposentou, retornou ao Brasil e foi lecionar História
do Livro, Bibliotecanomia e Bibliografia na Universidade de Brasília. Aos 75 anos Rubens retirou-se para Bragança
Paulista. Nos encontros com José Mindlin falava da preocupação com o destino da
biblioteca dele após sua morte e a deixou em testamento para o amigo, que a
acolheu. E assim Mindlin finalizou um belo artigo sobre Rubens de Moraes: “... (a
biblioteca) se encontra aqui em casa, intacta, arrumada como estava na casa
dele, e não se misturando com a nossa, pois uma biblioteca transmite a
personalidade de quem a formou. E a personalidade Rubens foi fora de série”. (22/02/1999).
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022
JUCA MULATO
O paulistano PAULO MENOTTI DEL PICCHIA (1892-1988) formou-se em Direito e trabalhou em diversos jornais e revistas; publicou seu primeiro livro de poesias por volta de 1913: “Poemas do vício e da virtude”; foi também artista plástico. Em 1943 elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira 28. Um dos grandes incentivadores do movimento modernista que o acolheu com entusiasmo. Seu poema “Juca Mulato”, de 1917, o coloca entre os primeiros escritores do Modernismo. Em 1922 estava com 30 anos.
GERMINAL
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol,
mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro,
apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o
seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A
sonolência vence-o.
Vem, na tarde que expira e
na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado,
esse veneno
que há no ventre da treva e
na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu
rosto moreno.
(...)
OBS.: A palavra mulato vem do espanhol e significa mestiço.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022
OS REBELDES
São Paulo iniciou as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 com a excelente exposição promovida pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP) e Centro Cultural da FIESP. Dificilmente haverá outra melhor porque o IEB é o detentor do mais completo acervo modernista do Brasil. Então não perca. Ponha a máscara, encha-se de álcool (só nas mãos) e vá até a Avenida Paulista, 1313 para conhecer esses artistas maravilhosos que, no verão de 1922, ousaram enfrentar os conservadores no templo do conservadorismo paulistano: o Teatro Municipal de São Paulo. Foram vaiados, ridicularizados, mas com o passar do tempo conquistaram o reconhecimento da crítica e do público (ainda há resistências). Conquistaram até o velho e bom José Bento Monteiro Lobato (1882-1948). Afinal, quem resistiria a Mário, Oswald, Guilherme, Heitor, Victor, Emiliano, Anita, Tarsila...?
A semana não reuniu apenas paulistas. O mais velho dos rebeldes era maranhense de São Luís: José Pereira da GRAÇA ARANHA, que em 1922 tinha 54 anos. Graça Aranha (1868-1931) foi escritor, diplomata e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (cadeira 38). Abraçou a causa modernista a ponto de mais tarde repudiar a Academia (que não o repudiou). A longa permanência no exterior como diplomata proporcionou a Graça Aranha acompanhar os novos movimentos artísticos da Europa pouco conhecidos no Brasil, onde ainda pontificavam artistas que se mantinham nos moldes do século XIX.
O maranhense gostou tanto da ideia da Semana de Arte Moderna que foi um dos seus organizadores e no dia da abertura do grande evento fez um discurso que 100 anos depois merece ser lido. Selecionei a primeira parte, mas o texto integral encontra-se disponível no site da Academia Brasileira de Letras.
https://www.academia.org.br/academicos/graca-aranha/bibliografia
A EMOÇÃO ESTÉTICA NA ARTE MODERNA
Para
muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos
hoje, é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem
amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos
da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações
da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores”
vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma
poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar
aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a
arte ainda é o Belo.
Nenhum
preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que
imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de
entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e
definitiva. Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza?
Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste
preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração
no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis
sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores
e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o
Universo, que a ciência decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus
fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos
exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, insolúvel em todos
os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista.
O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece
inextinguível, como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e seus fragmentos são
sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta
função intrínseca do espírito humano mostra como a função estética, que é a de
idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.
A
emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais
universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou
espectador. Cada arte nos deve comover pelos seus meios diretos de expressão e
por eles nos arrebatar ao Infinito. (...)
Graça Aranha (foto) é autor de “Canaã” (1901), “Malazarte“ (1911), “Estética da Vida“ (1921), “O Espírito Moderno“ (1924), “Manifesto de Marinetti e seus companheiros“ (1926), “A viagem maravilhosa“ (1929) e “O meu próprio romance“ (1931). Na Academia, ocupou a cadeira de Alberto Santos-Dummont.
MODERNISMO
Trocando em miúdos: a precursora do modernismo foi Anita Malfatti que pôs a cara para bater ao reunir seus quadros no salão da Rua Líbero Badaró, 111, pertencente ao conde de Lara, Antonio de Toledo Lara (1864-1935). Anita, então com 28 anos, tinha estudado arte na Alemanha e nos Estados Unidos. A Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti foi inaugurada em 12 de dezembro de 1917. Recebeu boas críticas, vendeu oito quadros até a publicação na imprensa da crítica de Monteiro Lobato (1882-1948) que, se reconhece o talento independente, original e inventivo da artista, arrasa a “arte moderna”. Sequer escapam “as extravagâncias de Picasso”.
Houve um visitante que riu sem parar ao se deparar com um “homem amarelo e uma mulher de cabelos verdes”, voltou outras vezes e se apresentou à Anita: “Sou o poeta Mário Sobral”. E esse foi o início de uma grande amizade, Mário Sobral era o pseudônimo de Mário de Andrade, que logo a avisou que um dia iria buscar “O homem amarelo” que tanto o agradara.
Os dois Andrades se encontraram em outras circunstâncias. Mário era professor de piano no Conservatório Musical e Dramático de São Paulo e em 1917 já publicara o livro “Há uma gota de sangue em cada poema”, que assinou como Mário Sobral. Em novembro de 1917, numa solenidade realizada no Conservatório em apoio à entrada do Brasil na Grande Guerra com a presença do secretário de Justiça do Estado, o cafeicultor e industrial Elói Chaves (1875-1964), Mário de Andrade fez um pequeno discurso sobre a pátria. A originalidade do texto encantou o repórter do Jornal do Comércio que o publicou na íntegra. O jornalista era o outro Andrade, Oswald. Oswald de Andrade (1890-1954), jornalista e crítico teatral. Nasceu a amizade entre os dois Andrades que terminaria em 1929 com o afastamento de Mário magoado com o amigo.
É interessante como sem se conhecerem estavam todos próximos. Nessa época, Oswald de Andrade mantinha uma garçonnière na Rua Líbero Badaró, 67 que acolhia não apenas suas paixões do momento, mas era palco de debates com os amigos Guilherme de Almeida (1890-1969), Vicente Rao (1892-1978), Ignácio da Costa Ferreira Ferrignac (1892-1958) e Monteiro Lobato entre outros.[2]
[1] Em 1913, o pintor expressionista russo Lasar Segall (1889-1957), de passagem pelo Brasil, realizou duas exposições, uma em São Paulo e outra em Campinas que não tiveram repercussão.
[2]
Fontes: “1922: a semana que não terminou”. Marcos
Augusto Gonçalves. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
“Oswald de Andrade:
biografia”. Maria Augusta Fonseca. São Paulo: Editora Global, 2007.