segunda-feira, 31 de outubro de 2022

DIA DE SACY PERERÊ

Foi lançada em junho deste ano a edição fac-similar de O Sacy, de Monteiro Lobato (1882-1948), livro publicado em 1921 e que hoje é uma raridade. A publicação dessa obra renovadora de Lobato inaugura o catálogo da Editora Graphien, criada especialmente para esse fim pelo bibliófilo Magno Silveira, editor e designer de São José dos Campos (SP). A edição tem artigos inéditos de Marisa Lajolo, Vladimir Sacchetta e Cilza Carla Bignotto. estudiosos da obra de Monteiro Lobato.

    O Estado de São Paulo e a própria cidade de São Paulo – tão cosmopolita – comemoram em 31 de outubro o Dia do Saci, assim como São José do Rio Preto e Vitória do Espírito Santo. Quem é o Saci? Um garotinho brasileiro negro com nome indígena e tem uma perna só, mas como é travesso, fuma cachimbo e usa uma carapuça vermelha que lhe dá poderes mágicos, como o de aparecer e desaparecer onde quiser e pregar peças nas pessoas. Dependendo da região do Brasil, a lenda varia assim como o nome: Saci-Cererê, Saci-Trique, Saçurá, Mati-taperê, Matiaperê, Matim Pererê, Matintaperera, Capetinha da Mão Furada etc. Conta-se também que ele costuma se transformar em passarinho como o Mati-taperê ou Sem-fim – conhecido no Nordeste como Peitica. Nas palavras de Monteiro Lobato: “O saci é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos”. Ele conta que o Saci faz tantas reinações quanto pode: “azeda o leite, quebra pontas das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça”. O relato faz parte do livro “O Saci”, em que o autor envolve Pedrinho, Narizinho e Emília em aventuras com vários personagens do folclore brasileiro, como a Cuca, o Boitatá e até a Iara.

O Saci é defendido, ardorosamente, pela Sociedade dos Observadores de Saci (SOSACI) de São Luis de Paraitinga, no interior de São Paulo, e que vem conquistando um número crescente de fãs. Há até uma Associação Nacional dos Criadores de Saci – ANCS, cuja sede era em Botucatu, e um dos membros, o sr. Edson Wagner, é de Porangaba (SP).

Eu não crio Sacy, mas gosto muito dele, apesar de frequentemente sumir com objetos aqui em casa.

(O Sacy da ilustração é do Ziraldo.)



Quanto a Bruxas, há apenas três de que gosto muito, todas do estúdio Walt Disney: a malvada da Bela Adormecida e as atrapalhadas Madame Min e Maga Patalógica. 





quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A PINTURA E A DANÇA

Para o bailarino, professor e coreógrafo Klauss Vianna (1928-1992) a dança “deixa de ser uma profissão, uma diversão, uma ginástica, deixa até de ser uma arte no sentido mais restrito do termo, para ser entendida e vivida como um caminho de autoconhecimento, de comunhão com o mundo e de expressão do mundo”, como escreveu Luis Pellegrini no prefácio do Livro “A dança”, que Klauss Vianna escreveu. 

     Pintores não ficaram imunes à beleza dos corpos em movimento e registraram belas imagens em suas obras.

 O francês Toulouse-Lautrec (1864-1901) foi um cronista que trocou a caneta pelo pincel, registrou as grandes dançarinas contemporâneas e perpetuou os anônimos frequentadores dos cabarés parisienses, especialmente o Moulin Rouge.


Heitor dos Prazeres (1898-1966), músico e compositor carioca, foi também pintor. As rodas de samba são um tema constante no seu trabalho, que mereceu o Prêmio de aquisição da I Bienal de São Paulo, em 1951 e foi exibido na Bienal de Veneza e no I Festival Mundial de Arte Negra de Dakar. 


 Pablo Picasso (1881-1973), também abordou o tema em algumas obras, como Três Dançarinas (1925).

Os Dançarinos (1987), óleo sobre tela do colombiano Fernando Botero, 92 anos.


Meu quadro preferido, entretanto, é Le Moulin de la Galette, de Auguste Renoir (1841-1919). O artista reproduziu uma cena que qualquer pessoa, goste ou não de dançar, apreciará muito. Casais dançando enquanto as pessoas conversam, bebem ou apenas escutam a música e observam os pares girando na pista... O casal junto da árvore – ele distante, ela triste. Os trajes elegantes. Os penteados caprichados. O reflexo da iluminação no chão. O tempo passou, mas a essência do quadro permanece atual. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

TANGO, SEMPRE APAIXONANTE.

O professor e crítico Décio de Almeida Prado (1917-1986) escreveu um ensaio apaixonante sobre Carlos Gardel e o tango, esse gênero que há muito tempo escapuliu das terras portenhas, ganhou o mundo e é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Em São Paulo, os adeptos formam uma confraria que se reúne em tanguerias famosas para dançar e admirar grandes bailarinos. Eu me juntei a eles há alguns anos no Clube do Tango, no Jardim Paulista, sob a batuta de dois bailarinos argentinos geniais – Omar Forte e Carolina Udoviko, um espaço em que dançavam pessoas de todas as idades; continuei por alguns anos no Tango B’Aires, na Vila Mariana, onde Omar Forte dá aulas e promove milongas memoráveis.

            Há muitas versões sobre a origem do tango, mas há um consenso de que foi mesmo no bas fond portenho que a dança surgiu e aos poucos ganhou espaço nas casas respeitáveis de Buenos Aires; mas escolhi o escritor Jorge Luís Borges (1899-2000) para comentar essa dança fascinante.

“Eu me lembro daqueles primeiros tangos sem letra ou com letra obscena e me lembro também de ter visto – estou pensando agora na esquina das ruas Serrano e Guatemala –, de ter visto o tango ser dançado ao som de um realejo por pares de homens, de homens porque as mulheres não queriam participar de uma dança cuja origem conheciam muito bem. E me lembro daquela sentença criada por Lugones: ‘O tango, esse réptil de lupanar’. Quero elogiar a precisão da palavra ‘réptil’, que contém as figuras do tango, as "quebradas" e os "cortes", a sinuosidade da dança e, claro, o desprezo que Lugones, um cordovês, devia sentir por uma dança com origem – equívoca ou não, mas bastante inequívoca – em Buenos Aires. E depois o tango cresce, e agora, como acaba de apontar Gancedo, todos nós, para além da nossa procedência, sentimos que o tango nos exprime, nos confessa. Claro que há diferenças de épocas: eu sou um senhor já de certa idade, não em vão nasci em 1899, e o tango que eu sinto que me confessa – ou que eu gostaria que me confessasse, pois já há uma certa nostalgia em tudo isso –, é o tango-milonga, ou o chamado ‘tango da velha-guarda’.” Jorge Luís Borges.

O vídeo que há anos está no YouTube mostra uma deliciosa apresentação dos irmãos Macana, exemplo do que Borges recorda em sua conferência, publicada pela Folha de S. Paulo e mais tarde inserida em um livro. 





(Tango B'Aires: Rua Amâncio de Carvalho, 23.)

domingo, 23 de outubro de 2022

ANTONIETTA E A DANÇA DE SALÃO


Você sabe quem foi Maria Antonietta Guaycurús de Souza (1927-2009)? Esta senhora faz parte da história da dança de salão brasileira. Esta carioca amazonense é tema de músicas, inspirou uma peça, ganhou um curta-metragem de Sílvio Tendler, participou de novelas e ensinou dança para muita gente famosa. A jornalista Tereza Drummond escreveu um livro sobre o mundo da dança de salão no Rio de Janeiro a partir da Academia Moraes, onde Antonietta começou sua trajetória. Uma leitura agradável, cheia de surpresas e que revela a força de uma mulher que teve seu trabalho reconhecido, porém, apesar do sucesso, vivia modestamente num pequeno apartamento na Rua dos Inválidos – suprema ironia, no centro do Rio de Janeiro. Morreu aos 81 anos, em consequência de enfarte.

          Os fãs de novelas conhecem bem o trabalho de Antonietta, que pôde ser visto em “Carmen” (Rede Manchete) em que dança com José Dumont; ensinou dança ao elenco de  “A, E, I, O, Urca” (Rede Globo); dançou com Carlinhos de Jesus em “Kananga do Japão” (Rede Manchete); coordenou o forró de “Renascer” (Rede Globo).

 

(ENQUANTO HOUVER DANÇA – Biografia de Maria Antonietta Guaycurús de Souza, a grande dama dos salões, de Teresa Drummond. RJ: Bom Texto, 2004.)

 

          Antonietta também foi homenageada por Maurício Tapajós, Aldir Blanc e Paulo Emílio com ANTONIETA NA GAFIEIRA.



https://www.youtube.com/watch?v=_U3NSkIis80 

sábado, 22 de outubro de 2022

O BAILE

Nunca houve um casamento tão feliz quanto o do cinema com a dança, que começou com a sonorização das películas, serviu de escape durante o período da grande recessão dos anos trinta e da II Guerra; terminando junto com a era dos grandes estúdios. Houve reconciliações esporádicas, com algumas obras muito boas, como O BAILE, de Ettore Scola (1931-2016). 

O BAILE

Neste filme, Ettore Scola relata 40 anos marcantes da história da França e, por extensão, do mundo, usando a dança como expressão. Dessa forma ele consegue fazer um filme musical e de forte conteúdo político: as relações entre os diversos personagens que vão dançar são marcadas pelos debates ideológicos das épocas retratadas no filme, como o fascismo dos anos trinta do século passado; o racismo que marcou a convivência entre franceses e argelinos durante a guerra de libertação da Argélia (1962); a manifestação dos estudantes em 1968. Tudo isso sem nenhum diálogo.

 

“Nestes tempos em que todo mundo fala demais, em que rádios e televisões nos tonteiam com suas conversas ininterruptas, achei que era necessário provar o quanto a palavra é inútil. A música, os gestos, o olhar, a maneira de se vestir e de dançar são muito mais eloquentes que qualquer discurso.

 

“A dificuldade é que não estamos mais acostumados a valorizar esses sinais, a prestar atenção aos outros e nos embriagamos com frases feitas, esquecendo que o subentendido tem mais valor do que tudo o que foi dito porque exige disponibilidade e inteligência” – Ettore Scola.

 

O roteiro, assinado por Ruggero Maccari, Jean Claude Penchenat e Furio Scarpelli, é baseado no espetáculo Le Bal do Theathre  du Campagnol, inspirado em uma ideia de Jean Claude Penchenat.





https://www.youtube.com/watch?v=iuDXZ07nOv0 

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

VAMOS DANÇAR?

Foi por causa da reportagem aqui transcrita que me interessei pela dança de salão.  No início, mais ou menos como o personagem do maravilhoso filme de Masayuki Suo – bem canhestra, mas depois melhorei. Pelo menos nunca levei um tombo. 

DOIS PRÁ LÁ, DOIS PRÁ CÁ. COMEÇAM OS TROPEÇÕES.

O pessoal do Centro Acadêmico “Visconde de Cairu” decidiu mostrar que na Faculdade de Economia e Administração – FEA pode-se trabalhar com números de forma bem mais agradável do que a maioria das pessoas imagina. Às quartas-feiras, na hora do almoço, é possível descobrir como funcionam os números agrupados em porções iguais de tempo, encadeados harmonicamente e com variada marcação. Tranquilize-se. Não se trata de uma nova tese de economia heterodoxa, mas uma simples e muito agradável aula de dança de salão.

Quem acha que os jovens de hoje não estão interessados no cheek to cheek, engana-se. A primeira aula foi um sucesso. Cerca de 30 pessoas apareceram. A maioria dos interessados era mulheres, por isso os rapazes que foram só dar uma espiadinha acabaram entrando na dança, ou melhor, na aula, sabendo ou não dançar.

Mas não é apenas na FEA que o pessoal resolveu dançar: a moda começou na Associação de Moradores do Crusp durante as férias e o Centrinho da Engenharia Naval também abriu suas portas aos dançarinos em potencial. Tudo começou com José Roberto Mendonza Correia, aluno da USP, que trancou matrícula no 3º ano da Engenharia Naval depois que descobriu que a sua vocação era mesmo a Informática. Excelente bailarino, Mendonza já vinha trabalhando com dança há um ano e resolveu oferecer os seus serviços na USP, enquanto se preparava para mudar de área.

Não se arrependeu. A ideia agradou em cheio a diretoria dos dois Centros acadêmicos, que viram no curso a oportunidade de promover uma aproximação maior entre os alunos das diferentes unidades da USP, como explicam o tesoureiro do Centro da Naval, e o coordenador cultural do Centro da FEA. Eles também acertaram: entre os inscritos, gente de todas as áreas de conhecimento da universidade.

O BAILE – Alunos de José Roberto não aprendem apenas a dançar. Ele faz questão que todos aprendam etiqueta: ensina o modo adequado de se “tirar” a dama para dançar (mesmo acompanhada), com uma ligeira inclinação do corpo, mostra a postura correta e avisa que a moça deve ser reconduzida ao local em que se encontrava. Não se pode jamais abandoná-la no meio da pista.

José Roberto avisa que não quer pares fixos para evitar que as pessoas adquiram manias e possam aprender a se movimentar de acordo com as características de cada parceiro. Outra coisa que ele não gosta é de pares do mesmo sexo. “Na dança os papéis são bem definidos: o homem conduz e a mulher o segue. É melhor começar aprendendo corretamente.”

Dadas as explicações básicas sobre a postura e os movimentos, o grupo vai pondo em prática, em meio a muitas risadas (inclusive da plateia que não se habilita), os ensinamentos recebidos. Na primeira lição, uma marcha. A escolha é muito simples, com ritmo binário, em que os tempos fortes são bem acentuados e que lembra a cadência do passo.

O resultado é hilariante: pisadas, tropeções, atropelamentos e, repentinamente, todos os pares estão amontoados. Ninguém nasceu sabendo. O professor vai orientando e consertando os erros, com calma. A plateia também incentiva. Para o merengue é preciso rebolar. Mas antes que os rapazes reclamem, Mendonza avisa que todo latino rebola, só brasileiro tem preconceitos e mostra como ter um gingado discreto, com um mero dobrar de joelhos, mantendo fixos o tronco e o pé no chão.

OS PÉS DE VALSA – Por enquanto, nem Fred Astaire nem Ginger Rogers (se fossem vivos) se sentiriam ameaçados. Mas a verdade é que no final da aula, percebe-se claramente o progresso dos alunos: já não parecem tão duros, os passos já não são muito desajeitados e procuram corrigir os erros apontados. Paulo confessa que adora dançar e achei ótima a oportunidade de aprender e foi um dos mais empenhados na primeira aula. Ana não teve dúvida: na hora do almoço foi até o Centro aprender “a dançar de tudo”. Ana acredita que quem não sabe dançar deixa de participar de muita coisa na vida. Cláudio foi espiar a aula e acabou convocado para ser par de alguém, gostou e resolver se inscrever. Bernardo acha que dançar é importante não apenas como divertimento, mas pela possibilidade de conhecer novas pessoas. “O professor normalmente privilegia o intelectual, o racional e agora com a dança eu procuro valorizar o corpo, soltar a emoção” – diz Donizete, professor de Filosofia.

Wilson, professor de alemão, não esconde a satisfação de poder realizar o velho sonho de aprender a dançar. Esforçado, ele se movimenta com desenvoltura pelo salão: “o ambiente é ótimo, faz muito bem para o corpo e para o espírito. Graça, mora perto, e quando soube do curso, se inscreveu. “Adoro dançar. É um exercício agradável e melhor do que ginástica, pois não é repetitivo e ainda mexe com as emoções”.

PRIMEIROS PASSOS – Os dançarinos devem se colocar frente à frente, naturalmente, cabeça e ombros erguidos. A mão direita do rapaz deve ficar no meio das costas da moça, que por sua vez pousa a mão direita no ombro do parceiro. Ele espalma a mão esquerda, levantada, à altura do ombro para que ela a segure (erguer o dedinho, nem pensar). Os pés dos dois bailarinos, ligeiramente afastados, devem se encaixar de forma que ambos se movimentem sem problemas. Espiar os pés é proibido.

Toda comunicação entre os parceiros é feita silenciosamente, através dos movimentos corporais: o aperto de mão pode indicar uma trombada iminente; a mão nas costas sugere a direção para a dama. Simples, não? Difícil é fazer tudo isso de forma coordenada, com elegância, sem perder o ritmo e por isso a primeira aula acaba sendo tão divertida para os participantes quanto para os inevitáveis bicões, que aparecem para dar “aquela força para a moçada”.

Dançar permite um relacionamento social menos formal, ajuda a combater a timidez e cultiva o lado emocional das pessoas” – afirma Mendonza. (HPPA)

(Síntese do original de Hilda Prado, publicado no Jornal da USP – ANO V – n.º 168)

      
https://www.youtube.com/watch?v=46HQAq2te-M 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

UM POSTE COM POESIA

 Na manhã de final de verão, caminhava pelo famoso Largo do Machado, quando vi ao fundo a entrada do Parque Eduardo Guinle e, claro, lá fui eu conhecer um espaço fora do meu programa. Fora do programa mesmo foi esse poste que encontrei no caminho. Seria como outro qualquer não fosse o vaso que o enfeitava, sustentado por um poemeto. Poeta anônimo que homenageia uma cadelinha amiga e torna mais ameno o caminho já perfumado pelo bosque na encosta do morro Nova Cintra. (A foto já se fora.) RIO DE JANEIRO, 2022.





segunda-feira, 17 de outubro de 2022

A ARTE DE FAZER TÍTULOS

 

Fazer títulos é uma arte. Hoje não tenho ideia de como funcionam os jornais e nem tenho curiosidade. Nas redações do século passado, a divisão de trabalho livrava os repórteres de criar um título para suas matérias. Podiam, naturalmente, sugerir, mas quase nunca se sabia o espaço que o editor ou a diagramação destinavam à sua obra. Cabia aos copidesques a ingrata tarefa; felizmente, havia alguns que dominavam a arte ou desafio, porque os títulos são criados por número de toques da máquina de escrever ou do teclado do computador.

Ao folhear um livro sobre literatura, fiquei surpresa ao saber que grandes escritores também padeceram para fazer os títulos de seus livros e chegavam mesmo a pegar “emprestado” ideias alheias. O autor cita Ernest Hemingway (1899-1961): “Adeus às Armas” ele achou em um poema de George Peele (1556-1596) e “Por quem os nos dobram” veio do poeta e pregador inglês John Donne (1572-1631). O título do seu último livro, publicado postumamente, foi dado pela viúva que o tirou de uma carta que Hemingway escrevera a um amigo em 1950 sobre a capital francesa, concluindo que “Paris é uma festa”.

Scott Fitzgerald, todo feliz, entregou ao editor seu novo livro intitulado “Trimalchio in West Egg”; mas o entusiasmo durou pouco, pois felizmente o título foi vetado, porque Trimalchio (personagem de Satíricon) seria impronunciável em inglês. O editor propôs “O Grande Gatsby”, que Fitzgerald teria aceitado a contragosto.

Títulos são fundamentais em uma obra porque das prateleiras das livrarias ou bibliotecas podem atrair um leitor distraído à primeira vista. Confesso que não sentiria nenhum interesse em um livro denominado Trimalchio. Ao contrário do que aconteceu com “Os Sete Pilares da Sabedoria”. Graças ao título conheci uma das personalidades mais fascinantes do século XX, T. E. Lawrence (1888-1935), Lawrence da Arábia. Ah! “Cem anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques (1927-2014), é um título maravilhoso para uma obra extraordinária, aliás, todos os livros dele têm títulos ótimos.

Na literatura brasileira: “Amar, verbo intransitivo” e “Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade, são os meus preferidos. “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado (1912-2001), é outro título que me agrada muito. Aliás, por falar em se inspirar em outros livros para criar títulos, por aqui, temos de Érico Veríssimo (1905-1975) “Olhai os lírios dos campos”, que vem diretamente da Bíblia: Mateus 6:25-34. Um livro que li e reli na juventude. E para terminar, “Meu destino é pecar”, um título simples, porém atrativo, do livro assinado por Suzana Flag, pseudônimo do polêmico Nelson Rodrigues (1912-1980). 

         

Embora não seja, exatamente, uma obra literária “(...) Nenhum título foi tão celebrado quanto este ‘Brasil, um país do futuro’. Transformou-se em cognome, sobrenome, estigma e vaticínio. País-promessa, terra do nunca, nação do amanhã – a expressão pode ser entendida em todos os sentidos” – segundo Alberto Dines no prefácio (L&PM Pocket, 2006). O autor é Stefan Zweig (1881-1942) que, perseguido pelo nazismo, foi acolhido pelo Brasil em 1941 durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

ABRICÓ-DE-MACACO

  Caminhar pelo Rio de Janeiro é uma experiência única, principalmente, se estiver atento à beleza da paisagem e do que sobrou da História deste país tão maltratado. Foi assim que, no final de uma tarde de fim do verão deste ano, encontrei esta lindíssima árvore no Largo da Lapa a caminho da Rua do Passeio. Consultei um botânico e soube que ela é a Couropita guaianensis, típica da Amazônia, mais conhecida como abricó-de-macaco. As flores nascem do tronco, o perfume recende a rosas e o fruto redondo chega a pesar três quilos. A polpa azulada. que protege as sementes, é comestível, mas como cheira mal é usada como ração para animais.  







domingo, 16 de outubro de 2022

TRISTE HISTÓRIA DE MARIE LAFARGE

(1816-1852)

Ela seria apenas mais uma moça a quem a vida prometia muito. Pelo menos parecia prometer. Era prima bastarda do rei Luís Felipe I de França, casou-se aos 23 anos com um mestre de forjas, que lhe prometeu mundos e fundos, mas queria mesmo o seu dote para saldar dívidas. As coisas foram mal desde o início: a casa prometida não passava de uma velha cabana, Lafarge tinha um temperamento difícil e era violento; ela resignou-se a tentar melhor a cabana enquanto ele corria atrás de mais dinheiro.

Um dos problemas de Marie era o batalhão de ratos que infestava a casa e para combater os roedores resolveu usar arsênico, que o administrador dos negócios do marido comprou a seu pedido. Espalhou o veneno com fartura pela casa. Por essa época o marido viaja para Paris e Marie resolveu fazer-lhe uma surpresa: prepara bombas de creme e enviou a delicatesse para Paris com um cartão de Boas Festas. Lafarge comeu um dos doces e começou a vomitar e a sentir violentas dores de cabeça, voltou imediatamente para casa e morreu onze dias depois (14/01/1840). A morte inesperada de Lafarge, levantou suspeitas e, quando a polícia foi interrogar os familiares, encontrou arsênico por toda casa.

Marie Lafarge foi presa, acusada de envenenamento do marido e o julgamento ocorreu oito meses depois. Foram feitas quinze análises toxicológicas do cadáver e apenas uma constatou a presença de arsênico e em quantidade mínima. A acusação recorreu ao renomado químico espanhol Matieu Joseph Bonaventura Orfila (1787-1853), o criador da toxicologia. Na época, Orfila usava um aparelho desenvolvido pelo químico britânico James March (1794-1846) para dosar arsênico e que Orfila aperfeiçoara. O espanhol pediu nova autópsia e depois de usar a máquina algumas vezes afirmou que ela revelara quantidade mínimas, mas incontestáveis de arsênico no cadáver. Surpresa geral. Dois resultados antagônicos. A defesa resolveu pedir uma terceira opinião e convocou para contraperícia o maior químico francês François-Vincent Raspail (1794-1878). Raspail provou que o arsênico existe naturalmente no corpo humano, que o método de Orfila não era confiável porque um dos seus reagentes continha arsênico e que, de qualquer maneira as quantidades reveladas pelo aparelho eram insuficientes para provocar envenenamento.

Pronto! Marie estava salva. Engano. Quando o resultado saiu, o julgamento terminara e ela fora condenada a trabalhos forçados perpétuos. Além das questões científicas e técnicas, o julgamento também sofreu com as disputas políticas da época entre republicanos e monarquistas, já que Marie era prima do rei. A Academia de Medicina exigiu perícia do aparelho de Orfila e descobriu-se que a máquina estava cheia de arsênico, sendo proibido seu uso.

Ninguém soube ao certo o que matou o sr. Lafarge, mas em seu livro sobre a história dos hospitais, o cirurgião Jean-Noël Fabiani (1947), especialista em história da medicina, levanta uma hipótese bem mais provável que o arsênico: intoxicação alimentar causada pelo doce feito por Marie com creme e manteiga, obviamente não pasteurizados, e que viajou durante três dias desde a casa deles até Paris.  

Ilustração: Wikipédia, autor desconhecido.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

RUAS PERFUMADAS

 

Encontrar um galo guardando uma calçada na Liberdade trouxe-me lembranças da infância em Santos, assim como o cheiro de pão que acabou de sair do forno me lembrou a padaria Cirilo. Às vezes, quando chove, emana dos jardins um odor de terra que me remete a outras paragens; como aquela cantiga que alguém assobiava me levou à era de ouro do rádio. Há um porém nessa viagem a outros tempos: a poluição das grandes cidades aos poucos vai eliminando esses pequenos prazeres das caminhadas, que acabam também por avivar nossas memórias olfativas e as auditivas. O assunto me ocorreu quando percebi que estava, sem dúvida, na quadra mais perfumada de São Paulo formada pelas ruas Tabatinguera, Anita Garibaldi, Carmo e a Silveira Martins, na Sé. O motivo é bem simples: nesse trecho concentram-se lojas de essências que espalham seus perfumes democraticamente pelo entorno que, infelizmente, nem é limpo. A ironia é que a pequena rua das Flores, espremida entre elas, não tem perfume nem poesia... De Santos, sinto falta da maresia.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

DIA DA AMÉRICA, DIA DE COLOMBO.

 “Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poder-se-ia, com mais acerto, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada. Uma estudante brasileira voltou-me em lágrimas após sua primeira viagem à França: Paris lhe parecera suja, com seus prédios enegrecidos. A brancura a limpeza eram os únicos critérios à sua disposição para apreciar uma cidade. Mas essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, essa vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplação e de reflexão, e não mais em simples instrumentos da função urbana – as cidades americanas nunca chegam a tal. Nas cidades do Novo Mundo, seja Nova York, Chicago ou São Paulo, que muitas vezes lhe foi comparada, o que me impressiona não é a falta de vestígios: essa ausência é um elemento de seu significado. Ao contrario desses turistas europeus que torcem o nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça mais uma catedral do século XIII, alegro-me em me adaptar a um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma forma diferente de civilização. Mas é no erro contrário que caio: já que as cidades são novas e tiram dessa novidade sua essência e sua justificação, custo a perdoá-las por não continuarem a sê-lo. Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovares com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal.”

“São Paulo” – in “Tristes Trópicos” (1955), do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Claude Lévi-Strauss lecionou na recém-criada Universidade São Paulo de 1935 a 1936 e não achou São Paulo uma cidade feia.

Foto: UNESCO/Michel Ravassard.

domingo, 9 de outubro de 2022

ESTA NOITE TIVE UM SONHO

Na verdade, quase nunca me lembro de sonhos e, quando acontece, a lembrança se esvanece rapidamente. Eis aqui um samba com um título maroto que o carioca Moreira da Silva (1902-2000), o Kid Morangueira, compôs em parceria com Wilson Batista (1913-1968) e gravou em 1941. A letra induz o distraído a uma história romântica, mas, como todo sonho, é uma trapalhada de um brasileiro perdido na Alemanha – vale lembrar que estávamos em plena II Guerra, porém, muito antes de o Brasil entrar na luta. 

Saltei em Berlim, entrei num botequim
Pedi café, pão e manteiga pra mim
O garçom respondeu: não pode ser não!
Fiquei furioso e fui hablar ao patrão
Que me recebeu com duas pedras na mão
E me disse quatro frases em alemão
Néris disso, sou doutor em samba
Venho de outra nação!

Tive vontade de lhe dar uns bifes
Ich nag dich, seu Fritz
Não se resolve assim não!
Venho do Brasil
Trago um presente pro senhor
Esta ganha e esta perde
Na voltinha que eu dou
Já tinha ganho todos os marcos para mim
Quando um grave Zeppelin jogou bombas, bum bum bum
Eu acordei, tinha caído no chão
Salsicha à noite, não faz boa digestão
Eu tive um sonho em alemão!

Só para esclarecer - Ich nag dich - em alemão gosto de você

Neris –nada em gíria, mais usada na expressão neris de pitibiriba.  



https://www.youtube.com/watch?v=ULcpmg0Boi4

sábado, 8 de outubro de 2022

SÁBADO COM BATATA FRITA

Gosto muito de batata frita, porém, o preço da porção é um escândalo. Na padaria, restaurante e lanchonete aqui do bairro a porção (nada generosa) sai por R$ 24. É claro que a nutricionista me consola dizendo que devo evitar a iguaria por questões de colesterol etc. e tal. Aurora Miranda gravou este samba de Cyro de Souza e Augusto Garcez em 1940. Quanto ao frango citado na composição, trata-se de um prato famoso servido no restaurante do antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. 

BATATA FRITA

Lá vem você,
Com a mesma conversa,
De todo o dia,
Que está tudo caro,
E você não pode,
Fazer economia,
Já não há manteiga,
E o feijão está custando um dinheirão,
Se a vida der um boléu,
Você acaba na rua,
Apanhando papel.

Você só come bife,
Com batatas fritas ou petit pois*,
Mas é que o meu dinheiro,
Não é verdura,
Que plantando dá,
E se você, menino,
Não está satisfeito,
E quer bancar o grã-fino,
Vá dançar um tango,
Vá comer um frango,
Lá pelo cassino.

Nada como de repente lembrar que “Batatinha quando nasce, espalha a rama pelo chão, e a menina quando dorme, põe a mão no coração”...Outra versão diz que a “batatinha se esparrama pelo chão”.

* Petit pois = ervilha.


https://www.youtube.com/watch?v=0su5Fwda_TA&t=8s 

domingo, 2 de outubro de 2022

NEWTON SEGUE AS REGRAS

O filme é indiano, chama-se Newton (2017) e trata dos problemas que um funcionário público ético e rigoroso no cumprimento das regras burocráticas enfrenta ao ser designado para coordenar uma seção eleitoral situada no meio de uma selva, onde atuam guerrilheiros maoístas contrários ao regime político vigente. Newton e seus auxiliares, que o acompanharam a contragosto na viagem, são recepcionados por um destacamento do exército que deve proteger o grupo. Quando chegam à aldeia, descobrem que ela se encontra deserta e a escola onde será a eleição parece abandonada. O que se sucede terá uma influência decisiva na vida de Newton que, aliás, chama-se Nutan, mas ele prefere Newton por ser parecido com a pronúncia do nome original e em homenagem ao físico inglês. O jovem Newton tem um sério defeito: a arrogância e a missão lhe ensinará várias lições. Assisti ao filme em 2018 e gostei. Direção de Amit Masurkar com Rajkummar Rao, Pankaj e Anjali Pati. 

https://www.youtube.com/watch?v=bDfFVbUBFyM 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

DIA DO CORAÇÃO

Para cientistas e médicos o coração é um músculo que funciona como uma bomba responsável pela distribuição do sangue pelo corpo, mas na Antiguidade acharam que ele era o centro das emoções e o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. O grego Empédocles (495 a. C.430 a. C.) foi quem apresentou pela primeira vez a ideia do fluxo e refluxo do sangue no corpo humano. Tudo isso, entretanto, faz parte da história do coração (por assim dizer) que desde 1967 pode ser transplantado, aumentando a expectativa de vida de cardíacos.

Hoje (29) é o Dia Mundial do Coração, criado pela Federação Mundial do Coração em 2019 para conscientizar e incentivar “indivíduos, famílias, comunidades e governos para criar uma comunidade global de heróis do coração – pessoas que prometem agir agora para viver mais e melhor no futuro, comprometendo-se a consumir alimentos saudáveis; fazer exercícios físicos; não fumar; controlar os níveis de colesterol”.

Excerto: “Passagem das Horas”, Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

“Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)”

Valfrido Pereira da Silva (1904-1972) e Alcir Pires Vermelho (1906-1994) são os compositores desta deliciosa música “O tic-tic, o tic-tac do meu coração” gravada por Carmen Miranda (1909-1955) em 1942. Coração que a traiu em 1955.




https://www.youtube.com/watch?v=pHmF65luS10 

“Antíoco I e Estratonice” (1774), óleo sobre tela do francês Jacques-Louis David. O rei macedônico é atendido por Erasístrato que, sentado ao lado da cama, dá o diagnóstico: as palpitações de Antíoco são causadas por Estratonice, a amada, que em pé observa a consulta junto à cama. 




terça-feira, 27 de setembro de 2022

CORAÇÃO (SAMBA ANATÔMICO)

O coração sempre pulsa mais rápido quando se trata de Noel Rosa (1910-1937). Noel morreu vítima da tuberculose aos 26 anos, mas nos deixou um valioso legado, que reúne dezenas de clássicos da música popular. Carioca de Vila Isabel (Feitiço da Vila), mais conhecido pelo seu lado boêmio, Noel Rosa em 1931 ingressou na Faculdade de Medicina, mas logo trocou os livros pela música (violão e bandolim). A passagem pela faculdade deve tê-lo inspirado a compor “Coração (Samba Anatômico)” em 1931.




https://www.youtube.com/watch?v=dZg-yexpGVw

CORAÇÃO

Grande órgão propulsor
Transformador do sangue venoso em arterial

Coração
Não és sentimental
Mas, entretanto, dizem
Que és o cofre da paixão

Coração
Não estás do lado esquerdo
Nem tampouco do direito

Ficas no centro do peito eis a verdade!
Tu és pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro

Eu afirmo
Sem nenhuma pretensão
Que a paixão faz dor no crânio

 mas não ataca o coração.

Conheci
Um sujeito convencido
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza
Que, por saber
Que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro
Não achando
Quem lhe arrancasse as veias
Onde corre o sangue impuro
Viajou a procurar de norte a sul
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.

 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

MEU CORAÇÃO...

Uma união perfeita da obra de Pixinguinha com a João de Barros, o Braguinha, resultou em uma das mais belas composições da música popular brasileira. Nem Pixinguinha lembrava ao certo o ano em que compôs o chorinho, pois em vários depoimentos as datas variam. A primeira gravação instrumental foi realizada em 1928 pela Orquestra Típica Pixinguinha – Donga. A letra, entretanto, só foi composta em 1936. Em outubro daquele ano, a cantora e atriz Heloísa Helena (1917-1999) participaria de um evento beneficente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e pediu a Braguinha uma canção inédita que a destacasse no espetáculo. Como Braguinha não dispusesse no momento de nenhuma, aceitou a sugestão de Heloísa Helena para criar versos para “Carinhoso”. Braguinha procurou Pixinguinha, que aprovou a ideia, e no dia seguinte Braguinha entregou a letra para Heloísa Helena. Em 1937, o cantor Orlando Silva (1915-1978) fez a primeira gravação de “Carinhoso”. Com arranjo de Radamés Gnatalli, o disco teve a participação de Pixinguinha (flauta), Luiz Americano (em um dos clarinetes), Garoto (cavaquinho) e Perrone (bateria).




https://www.youtube.com/watch?v=mGG3Di84wp8

Meu coração
Não sei por quê 
Bate feliz, quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim, foges de mim

Ah! Se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E muito e muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim


Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim, então,
Serei feliz, bem feliz.

domingo, 25 de setembro de 2022

CORAÇÃO

Não por acaso Sílvio Caldas (1908-1998) é um dos cantores consagrados no cenário artístico nacional do século XX. Fez parte da “Era do Rádio”. Dono de voz e interpretações maravilhosas, continuo a ouvi-lo com imenso prazer. Alberto Ribeiro (1902-1971) é o autor da letra deste “Coração”, que Silvio gravou em 1938. Ribeiro, entre outras composições, assina o clássico “Copacabana, princesinha do mar”. Ambos são cariocas.

CORAÇÃO

Coração, por que bates tão depressa
Se ela há muito te esqueceu.
Não vês que aquela mulher
Coração não tem, sequer
Desconhece o que é chorar
Bate mais devagar.


Coração, abre a porta da saudade,
Deixa entrar a ilusão.
Felicidade é canção a duas vozes,
Felicidade não foi feita para um só.
Não sendo assim, o amor será
Coração, sonho desfeito em pó
E nada mais.




https://www.youtube.com/watch?v=wNb2a2kYtu8

domingo, 18 de setembro de 2022

GOETHE E A ITÁLIA

 

Retrato de Goethe na Campagna, de autoria de Heinrich Wilhelm Tischbein, amigo que hospedou o escritor em Roma.

       Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) nasceu em Frankfurt Am Main, Alemanha. Aos 37 anos ele ocupava o posto de ministro do ducado de Weimar (Turíngia), trabalho que o entediava porque já era um escritor reconhecido na Europa. Seu primeiro livro “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774) é um marco da literatura alemã e inicia romantismo. Escrito da forma epistolar tem um forte componente autobiográfico aliado à ficção. O tédio do trabalho e o fim de um relacionamento amoroso foram decisivos para a “fuga” que empreendeu uma noite logo após seu aniversário para realizar seu grande sonho: conhecer a Itália. Goethe tinha uma sólida cultura: formou-se em ciências jurídicas, mas interessava-se por ciências naturais, arquitetura, artes e história entre muitas outras coisas. Falava francês, italiano e inglês e sabia latim e grego. 

Ele começa o diário de viagem (cartas que escrevia aos amigos) no dia 3 de setembro de 1786, explicando que teve que sair escondido porque do contrário não o deixariam partir. A aventura começou às três horas da manhã. “Munido apenas de um alforje e uma mochila de pele de texugo, lancei-me sozinho numa mala-posta e cheguei a Zwota às sete e meia, numa bela e tranquila manhã enevoada”. (Nos dias atuais, Zwota faz parte de Vogtlandkreis, na Saxônia.) Goethe usou o pseudônimo de Jean-Philip Möller. “Meu singular e talvez caprichoso semianonimato traz vantagens que sequer imaginei. Uma vez que todos se obrigam a ignorar quem sou e, portanto, ninguém pode vir falar comigo sobre mim, nada mais resta às pessoas do que falar de si próprias ou de temas que lhes interessam; assim sendo, fico sabendo  em detalhes o que cada um faz, ou o que quer se passe de curioso.”

A viagem nada tinha de turística, coisa que ainda não havia sido inventada. A jornada de Goethe tinha um objetivo mais nobre:  o conhecimento de si próprio e da Antiguidade. Entretanto, reconheço em seu relato o mesmo entusiasmo, a ansiedade do viajante diante do novo “...ao cair da tarde de 28 de setembro de 1786, às cinco horas do nosso horário, eu, proveniente do Brenta e alcançando as lagunas, avistaria Veneza, essa maravilhosa cidade insular; essa república de castores que, logo a seguir, eu estaria adentrando e visitando.” E Veneza não o desaponta. Sozinho, ele percorreu a cidade a pé procurando orientar-se “ao entrar e sair desse labirinto sem perguntar nada a ninguém, apoiando-me mais uma vez apenas nos pontos cardeais". Comprou um mapa da cidade: “Para estudá-lo, subi à torre de São Marcos de onde um espetáculo singular se descortina a nossos olhos. (...) em plena luz do sol, de modo que, mesmo sem um telescópio, pude divisar com clareza o próximo e o distante”.

Como grande escritor as descrições das cidades, dos campos, das montanhas, dos rios e lagos são precisas, elegantes. “Mantenho os olhos sempre abertos e registro bem em minha mente tudo o que vejo. Julgar, não desejo, tanto quanto me é possível não fazê-lo.” Seu pecado, ter passado poucas horas em Florença, mas anseia por Roma: “Não há maneira de alguém preparar-se para Roma senão em Roma”.

Já no final de outubro, próximo à chegada a Roma, Goethe faz uma observação sobre o cotidiano do viajante: “Sinto agora a temeridade que é caminhar por estas terras, sem preparo ou companhia. As diferentes moedas, os vetturini (cocheiros), os preços, as pousadas ruins, tudo isso constitui uma amolação cotidiana, só podendo fazer com que se sinta assaz infeliz aquele que, como eu, viaja sozinho e pela primeira vez por este país, onde esperava encontrar prazer infindável. Contudo, eu nada mais queria do que ver este país, qualquer que fosse o custo; e ainda que me arrastem até Roma preso à roda de Íxion, não desejo me queixar”.

ROMA

A ansiedade para chegar à Cidade Eterna faz com que o escritor se apresse: em Bolonha, onde um criado bem informado conduziu-o “em disparada pelas ruas da cidade e por tantos palácios e igrejas” que ele mal teve tempo de anotar os lugares que visitou e se pergunta se lembrar-se-á de tudo o que viu. Comenta, encantado, que “... a arte é como a vida: quanto mais se avança por ela, mais ampla ela se faz”. Entretanto, se os seus olhos se fartaram com a beleza, Goethe, acrescentou à bagagem seis quilos de pedras (baritina), que fascinaram o mineralogista.

            A paixão do escritor pela Itália foi-lhe transmitida pelo pai, que ornamentara uma antessala com vistas de Roma e agora ele via o que já conhecia há tempos (pinturas, desenhos e gravuras) aonde quer que ele fosse: “tudo é como eu imaginava e tudo é novo”. Sobre suas ideias: “nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão definidos, tão vivos, tão correntes, que poderiam passar por novos”. Em Roma, Goethe é recebido por um velho amigo, o pintor alemão Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1751-1829).

            De repente, Goethe deixa escapar outro motivo de sua pressa para chegar a Roma: as comemorações do dia de todos os santos (1ºde novembro). Como protestante, ele achava que, se os cristãos reverenciavam tanto cada santo em particular, nessa data houvesse uma grande festa para todos. “Como me iludi” – comenta. No dia seguinte (Finados) foi levado ao Palácio Quirinal onde o Papa celebrou missa em memória dos Mortos – o que não o agradou tanto quanto as obras de arte que pôde admirar longe da capela. Enfim, aos poucos, o escritor vai se socializando na cidade, perdendo-se pelas ruas em busca das belezas remanescentes da Antiguidade, visitando teatros, indo a jantares e fazendo pequenas viagens pelo entorno de Roma. Há um lado turístico, por assim dizer, nos movimentos dele pela cidade.

Não me estenderei sobre as mil aventuras que Goethe viveu durante uma estadia de quase três meses. Gostou tanto que teve sérias dúvidas se deveria ir a Nápoles, mas no dia 22 de fevereiro se pôs a caminho. Aproveita o trajeto para apreciar cada lugar por onde passa. Chega no dia 26 e, novamente, não esconde o impacto que a cidade lhe causa: “Perdoei a todos quantos perdem a cabeça em Nápoles, e lembrei-me comovido de meu querido pai, que preservou uma impressão indelével sobretudo das coisas que viu aqui e que hoje pude ver pela primeira vez”.

O Vesúvio atrai o mineralogista que se decepciona na primeira visita (2/03); retorna em 6 de março e depois no dia 20, quando o avisam de que ele está em atividade e dessa vez satisfaz sua curiosidade científica.  

 No dia 26 de março, Goethe embarca para Palermo, na Sicília, onde visitará várias cidades; entretanto, dessa etapa vale a pena cada linha de seus comentários sobre o que viu na propriedade do príncipe de Palagônia a leste de Palermo – único momento em que o viajante fica realmente indignado com o mau gosto – um castelo de horrores.   

        Enfim, o livro proporciona a possibilidade de uma viagem à Antiguidade e ao final da idade Média (a Idade Moderna começa a partir da Revolução Francesa) tendo como guia um homem extraordinário (esqueci de dizer que Goethe também era desenhista). Se fosse possível uma viagem no tempo e ele retornasse, reconheceria por certo as obras artísticas, mas dificilmente reconheceria as cidades por onde passou – Innsbruck (Áustria), Passo de Brenner (Itália), Bolzano, Trento, Verona, Vicenza, Pádua, Veneza, Bolonha, Perugia, Florença, Assis e... Roma. Nápoles e Sicília – Palermo, Catânia entre tantas outras.

"De que vale a contemplação sem a reflexão" – Goethe. 


Estudo dos perfis mediterrâneos feitos por Goethe em suas excursões por Roma e arredores. 






Viagem à Itália – 1786-1788, de J. W. Goethe, Companhia das Letras, 1999.



(Íxion, personagem da mitologia grega, que foi amarrado a uma roda e queimado por toda a eternidade por determinação de Zeus.)